Entrevista de Taís Ranali de Carvalho Pinto para a Revista Psique/ Março de 2015

PSICANÁLISE, A CIÊNCIA DO INCONSCIENTE

Por: Aline Queiroz

Fotos: Andrea Lira

A psicanalista Taís Ranali de Carvalho Pinto contextualiza a questão psicanalítica, a partir da Análise Leiga, e os desafios que profissionais da área enfrentam nos consultórios e na educação

O criador da Psicanálise, Sigmund Freud, acreditava que essa ciência deveria ser autônoma, ou seja, independente da área médica, mas, principalmente, da Psicologia e da Psiquiatria, pois poderia se tornar uma subárea dessas. Logo, qualquer pessoa interessada poderia estudar Psicanálise, mesmo sem possuir um grau universitário. Antes dá Segunda Guerra Mundial, já existiam psicanalistas não médicos e esses números foram crescendo cada vez mais. O termo Análise Leiga apareceu, pela primeira vez, em um artigo escrito por Freud, em 1926, quando um de seus membros não médicos foi acusado de charlatanismo, nos tribunais de Viena. Nele, defendia que qualquer psicanalista precisa de uma formação específica e que essa é, justamente, o oposto do que se aprende nas faculdades de Medicina ou Psicologia. Além disso, grandes personagens do cenário psicanalítico eram analistas não médicos e alguns não possuíam grau universitário, como Melanie Klein, Anna Freud, Hanns Sachs,

Ernest Kris, James e Alix Strachey, August Aichorn e Joan Riviere. Baseado nesse contexto, Taís Ranali de Carvalho Pinto, formada em Biologia e, posteriormente, em Psicanálise, há 18 anos, pela Sociedade Paulista de Psicanálise, na qual é a atual presidente e docente, explica alguns critérios e a posição da Psicanálise no século XXI.

Para ela, todos os cursos de Psicanálise devem seguir o tripé deixado por Freud: formação teórico-técnica, análise pessoal e supervisão de pacientes, sendo a mais importante, a segunda: “costumo dizer aos meus alunos que a análise individual é, além de uma importante forma de tratamento para suas próprias perturbações mentais, a sua primeira prática clínica”.

Apesar de existir preconceito e resistências de pessoas que julgam a Psicanálise como “coisa de louco”, ela está expandindo para diferentes áreas, como escolas, teatros, empresas e hospitais, levando benefícios e método de investigação e de tratamento da mente humana.

Aline Queiroz é jornalista e colaborou com esta publicação.

Como partiu da biologia para a psicanálise?

Taís Ranali de Caravalho Pinto: comecei a formação em Psicanálise e minha análise pessoal ainda muito cedo, quando cursava a faculdade de Biologia. Formei-me psicanalista e bióloga no mesmo ano, mas ainda não podia atender pacientes por não estar tão “avançada” na análise como estava nos estudos. Então, trabalhei por um tempo como bióloga e depois escolhi a profissão de psicanalista. Acredito que ter adquirido o conhecimento psicanalítico e ter passado por análise tão jovem me ajudou a fazer boas escolhas.

O que é Análise Leiga? Como e porque Freud criou esse termo?

Taís – Análise Leiga é a praticada por não médicos. Freud publicou o artigo A Questão da Análise Leiga, em 1926, após uma acusação de charlatanismo contra um membro não médico da Sociedade Psicanalítica de Viena, que vinha praticando a Psicanálise. Nessa época, já existiam divergências de opinião sobre se a Psicanálise poderia ser praticada por não médicos ou não. Freud aproveitou para esclarecer essa questão, definindo que charlatão não é aquele que trata um paciente sem ser médico, como diz a lei, mas “aquele que efetua um tratamento sem possuir o conhecimento e a capacidade necessários para tanto”. Portanto, olhando o outro lado da moeda, ter diploma médico e não ter a formação exigida para exercer a Psicanálise pode ser considerado charlatanismo. A verdade é que ninguém deve praticar a Psicanálise e nem qualquer outra atividade profissional se não tiver adquirido a capacidade de fazê-lo por meio de uma formação específica.

Como é a formação psicanalítica da Sociedade Paulista de Psicanálise (SPP)?

Taís – Na SPP, seguimos o tripé legado por Freud: formação teórico-técnica, análise pessoal e supervisão de pacientes. A Psicanálise é a ciência do inconsciente e, para exercê-la, é necessário que o aspirante a psicanalista se submeta, ele próprio, à análise para que adquira suas próprias convicções a respeito da vida psíquica. Somente conhecimento teórico não é suficiente para formar um bom psicanalista. Depois de efetuadas as duas primeiras etapas da formação, o recém-formado deve iniciar o processo de atendimento de pacientes, supervisionado por um psicanalista experiente. Ainda assim, deverá continuar com a análise pessoal por mais algum tempo, pois enfrentará problemas e novidades no decorrer de sua nova profissão.

O que um curso de Psicanálise deve fornecer aos alunos?

Taís – Um curso de formação em Psicanálise deve fornecer aos alunos um sólido conhecimento psicanalítico, iniciando com Freud, criador da Psicanálise, e passando por importantes personagens do cenário psicanalítico pós-Segunda Guerra, como Melanie Klein, Bion, Winnicott, Lacan e autores contemporâneos, como Otto Kernberg, que faz sua contribuição ao entendimento de pacientes borderline, transtorno não es- tudado por Freud e muito presente nos dias de hoje, entre outros. Dessa forma, o aluno terá uma visão geral de como se desenvolveu a Psicanálise em vários países e quais foram as contribuições mais importantes. Outras matérias importantes são também Filosofia, Sociologia e Neurociência.

Quais as “qualidades” que uma pessoa precisa ter para ser psicanalista?

Taís – Para ser psicanalista é necessária uma formação séria e de qualidade, com professores e analistas capacitados. Mas o ponto alto da formação psicanalítica é, sem dúvida, a análise pessoal, pois, como diz Freud, “é o melhor meio de formar uma opinião sobre sua aptidão pessoal para o desempenho de sua exigente profissão”. Sabemos ser impossível tratar de um paciente sem estar com o emocional equilibra- do pelo processo psicanalítico. A prática clínica é o terreno da expressão da singularidade dos processos mentais inconscientes e, para entendê-los, é necessário experimentar na própria pele. Costumo dizer aos meus alunos que a análise individual é, além de uma importante forma de tratamento para suas próprias perturbações mentais, a sua primeira prática clínica. É no consultório do seu psicanalista que o aluno verá como a “mágica” acontece.

Você atua na área psicanalítica há 18 nos. então, como analisa o avanço da psicanálise no brasil durante a última década? Qual o atual cenário da psicanálise no século XXI?

Taís – Hoje presenciamos a difusão da Psicanálise em diversas áreas, como a artística, educacional e hospitalar, assim como Freud desejou que um dia acontecesse. Em seu artigo Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica, ele escreve sobre a necessidade de se criarem instituições que designassem psicanalistas para tratar uma grande parte da população afetada pelos efeitos destrutivos da Primeira Guerra Mundial. No artigo Explicações, Aplicações e Orientações, Freud fala sobre as aplicações da Psicanálise à educação, à criação da nova geração. Cada vez mais o psicanalista é convocado a estar presente em diferentes universos, que não só o consultório. Na SPP temos alunos de diversas áreas e psicanalistas formados, escrevendo peças de teatro com temas relacionados às questões humanas, sendo explicados psicanaliticamente. No Brasil, em 2001 vimos à aprovação de uma Lei que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, a qual deu origem à Política de Saúde Mental. Este mecanismo visa a garantir o tratamento desses pacientes em serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, nascendo, assim, os hospitais-dia, nos quais o paciente não precisa mais ficar internado e isolado do convívio familiar, recebendo tratamento psicoterapêutico, além do cuidado médico. Vimos crescer, também, o conceito de “equipe multidisciplinar”, no qual profissionais de diversas áreas, como psiquiatras, psicanalistas, psicólogos, assistentes sociais, psicopedagogos e médicos trabalham em equipe, para o bem comum do paciente.

Como você imagina o cenário psicanalítico daqui alguns anos?

Taís – Acredito que a Psicanálise continuará sendo um poderoso método de investigação e de tratamento da mente humana. Ela desperta a curiosidade de vários campos do saber e está presente na linguagem cotidiana das pessoas, que se acostumaram a usar termos como compulsão, ansiedade, depressão, histeria, psicopatia e inconsciente. Além disso, uma pessoa que sofre, por exemplo, de flutuações em seu humor, que não consegue controlar, e que se tornaram intoleráveis, procura um psicanalista, com o qual inicia uma análise, a fim de descobrir algo sobre seu sofrimento e como lidar com ele. Não se trata de não sofrer mais, mas de desenvolver um crescimento emocional tal, que proporcione à pessoa condições para enfrentar o que é inevitável, da melhor forma possível, e procurar se safar do que é evitável.

Quais os principais desafios que você encontra/enfrenta como educadora?

Taís – Assim como no consultório, na formação psicanalítica enfrento questões como o preconceito (por acreditarem ser coisa de louco) e a resistência (por ser a Psicanálise ainda muito nova no mundo), o que seria facilmente contornável se não houvesse, também, questões relacionadas a características emocionais do ser humano, como a disputa de poder, a formação de grupos, a onipotência e a imaturidade emocional.

Qual o lado positivo e negativo de não existir um órgão que regulamente a psicanálise?

Taís – O lado negativo é a ausência de uniformização na formação do psicanalista, na fiscalização da atividade e no cumprimento de deveres éticos, podendo alguém os infringir sem qualquer punição. Mas isso não significa que alguém que não tenha tal intenção, não saiba que, muitas vezes, regras são inadequadamente elaboradas e ofendem nosso sentimento de justiça. Freud diz que algumas práticas religiosas são uma aberração lamentável e nem por isso alguma autoridade admite puni-las, acreditando que o homem é livre e pode fazer suas próprias escolhas e que as coisas que realmente importam, como as possibilidades que a Psicanálise oferece de desenvolvimento emocional, jamais poderão ser afetadas por regulamentos e proibições.

A ansiedade é uma das principais causas que aparecem nos consultórios, como você compreende e justifica isso?

Taís – A ansiedade é uma reação normal diante de situações de ameaça ou perigo, que provocam o medo. É uma característica biológica normal em todos os animais, inclusive no homem. Diante dessas situações, a ansiedade funciona como um sinal que prepara o animal para lutar ou fugir. Graças ao medo, evitamos várias situações que colocariam nossa vida em risco. Às sensações corporais são de taquicardia, sudorese, aperto no peito e dor no estômago. Até aqui tudo normal. O problema é quando há uma sensação excessiva de medo sem causa real, o que ocasiona uma reação desproporcional e grande sofrimento, interferindo, inclusive, na qualidade de vida da pessoa. Qualquer um pode sentir ansiedade, principalmente, com o ritmo de vida atribulado, a alta competitividade no ambiente de trabalho e a violência. Mas se algum desses fatores se torna impeditivo para a realização das tarefas do dia a dia, estamos diante de uma ansiedade patológica.

Quais os benefícios de fazer análise e estudar psicanálise (em curto e longo prazos)?

Taís – Fazer análise significa poder usufruir dos benefícios do autoconhecimento proporcionado por ela. É lá que trabalhamos nossos medos, traumas, inseguranças e todo tipo de sintoma. É lá, também, que temos a oportunidade de ressignificar nossas experiências passadas para podermos viver um presente e um futuro melhores. Já o conhecimento teórico nos ajuda a desvendar os mistérios da psique humana, o que faz com que compreendamos e melhoremos nossos relacionamentos interpessoais e profissionais.

Quais são os maiores problemas psíquicos que enfrentamos no século XXI?

Taís – Transtornos mentais sempre existiram. A diferença é que a humanidade gastou dezenas de milhares de anos para alcançar o primeiro bilhão de habitantes, por volta de 1800. Em 2000, já havia mais de 6 bilhões de humanos no planeta. Durante esse período, o homem foi, gradativamente, abandonando o modo de vida agrícola e se multiplicando nas cidades, o que contribuiu para que fatores ambientais (sociais) desfavoráveis, associados a aspectos genéticos, fossem responsáveis pelo aumento do número de transtornos mentais e de comportamento. Depressão e ansiedade são exemplos de doenças psicológicas comuns nas atuais sociedades industrializadas. Estudos recentes têm mostrado que a exposição a estressores, durante o desenvolvimento inicial, está associada à hiper-reatividade cerebral persistente e o aumento da probabilidade de depressão numa fase posterior da vida. Dados divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que, nos próximos 20 anos, a depressão deve se tornar a doença mais comum do mundo.

Devido ao fato de não existir um órgão que regulamente a prática psicanalítica, como saber se os profissionais que estão atuando no mercado, tem base para exercer a profissão?

Taís – Mesmo que houvesse um órgão que fiscalizasse, não há como ter certeza de que profissionais, de qualquer área, estão aptos ao trabalho, até que reclamações sejam efetuadas e apuradas. O que acontece quando se tem um órgão fiscalizador é que o profissional será punido, podendo até deixar de exercer seu ofício. No entanto, no caso da Psicanálise, temos uma vantagem: nada fazemos senão conversar com o paciente. Não medicamos, não examinamos, não operamos. Não quero dizer, contudo, que isso não possa ser prejudicial, mas penso, também, que o julgamento dos pacientes é extremamente válido. O psicanalista, que não é bom no que faz, não sobrevive no mundo profissional. Dessa forma, acho extremamente importante que os pacientes efetuem uma investigação acerca da vida profissional de seu futuro analista.

Em sua opinião porque tantas instituições misturam práticas ditas “holísticas” à psicanálise? O que poderia ser feito para evitar isso?

Taís – O Brasil é um país composto por influências culturais de vários povos e etnias. A abordagem holística acredita que os elementos emocionais, mentais, espirituais e físicos de cada pessoa formam um sistema, e objetiva tratar de tudo isso. Eu não acredito ser uma boa ideia a combinação de Ciência e Religião no que se refere ao estudo ou prática de qualquer disciplina. Da mesma forma que um psicanalista deve encaminhar seu paciente a um médico, mesmo o sendo, acho que, como psicanalistas, devemos tratar os transtornos emocionais de nossos pacientes e ajudá-los no crescimento psíquico, para que possam fazer escolhas mais maduras e procurar suas verdadeiras crenças.

O fato de uma pessoa ter conhecimento na área médica o faz um melhor psicanalista do que pessoas formadas em outras áreas?

Taís – O que Freud nos ensina é que, no aprendizado médico, o estudante recebe uma formação que é o oposto do que seria necessário para ser psicanalista. O interesse dos médicos não é despertado para os fatores psíquicos da vida do paciente, senão o oposto, para os determinantes somáticos. Eles aprendem sobre anatomia, fisiologia e cirurgia, o que não os ajuda a compreender sobre a natureza de uma neurose. O mesmo ocorre nas várias especialidades médicas: um cardiologista pouco ou quase nada saberá sobre odontologia. Com relação à vida mental, isso fica ainda pior, pois a experiência de um psicanalista se encontra em outro contexto, com outros fenômenos e outras leis. Há, também, uma regra que, sendo um psicanalista também formado em Medicina, caso seu paciente apresente algum sintoma físico, deverá encaminhá-lo a um outro médico, não devendo, jamais, efetuar o tratamento físico e mental concomitantemente. Isso porque o ato de examinar o paciente afeta a relação entre ele e seu psicanalista (transferência), o que não seria desejável para a obtenção dos objetivos terapêuticos. Ademais, o analista, voltado às questões emocionais de seu paciente, poderia muito bem negligenciar qualquer sintoma físico, alegando ser fruto de somatização.

Qual a sua opinião sobre cursos de formação online, uma vez que essa formação envolve a análise do comportamento humano?

Taís – Não tenho experiência com cursos de Psicanálise on-line, mas o que consigo perceber na formação psicanalítica, com posta por aulas presenciais, é que primeiro o conhecimento que o aluno está adquirindo sobre Psicanálise é um tanto abstrato e, por isso, são necessárias várias formas de abordar o assunto para que o professor possa se fazer compreender, por meio de exemplos clínicos e analogias. Segundo, o aluno é, muitas vezes, inseguro da possibilidade de se tornar psicanalista, e quando o percebemos por intermédio de colocações em sala de aula, podemos intervir, mais eficientemente (e penso que isso só é possível com um contato mais próximo), e, terceiro, os alunos apresentam relações de transferência e identificação com o professor, as mesmas que acontecem dentro do setting, com o analista. Sendo assim, o professor se torna, muitas vezes, um modelo admirado, passível de ser “copiado” como psicanalista por muitos alunos.