Adoção: uma reflexão a partir da psicanálise

Por Waldemar Junior

A decisão para se adotar uma criança ou adolescente é a manifestação de um desejo que por vezes carrega motivações que parecem estar claras e serem suficientes para realização deste ato. Em tese, a adoção é um encontro perfeito entre quem deseja alguém que está esperando ser desejado. Mas sabemos que na adoção nem sempre esse encontro alcança uma resolução favorável. Algo sai do controle e provoca turbulências muitas vezes incontornáveis aos recursos detidos por qualquer das partes envolvidas. Em decorrência, muitas vezes o colapso do encontro é inevitável e a visão romântica da adoção cede lugar a experiências de muita frustração e sofrimento.

A adoção é um processo. No caso, processo deve ser aqui entendido em sentido amplo e não apenas aquele que tramita no Judiciário e que se encerra com a sentença de adoção proferida pela autoridade judiciária. O processo de adoção se inicia antes mesmo da decisão de adotar, com o vislumbre desta possibilidade e o amadurecimento da ideia; passa pela tomada da decisão; pelo processo judicial e se estende pela pós-adoção. Todo esse processo tem como fim desejado possibilitar a formação de vínculos saudáveis entre adotantes e adotados.

É diante da possibilidade de a adoção não vir a surtir o efeito desejado, ou ainda, não o estar surtindo, que a participação de profissionais capazes de promover uma intervenção qualificada se faz essencial. Entre alguns dos profissionais envolvidos na adoção, encontram-se assistentes sociais, promotores públicos, juízes, psicólogos, psicanalistas, entre outros. A atuação do psicanalista dentro do universo da adoção pode se dar tanto na clínica, como junto às equipes técnicas da Justiça da Infância e da Juventude, neste caso, se o psicanalista também possuir formação em psicologia. Há também a possibilidade de atuação junto aos grupos de apoio à adoção, cuja finalidade é a orientação de pais adotivos e pretendentes à adoção.

As mais diversas questões relacionadas à adoção se beneficiam da escuta diferenciada propiciada pela psicanálise, pois é justamente no inconsciente que muitas vezes se encontram questões mal resolvidas que podem influenciar negativamente o sucesso da adoção. Trazer à consciência o recalcado e as fantasias e possibilitar sua interpretação e elaboração significa aumentar a possibilidade do estabelecimento de vínculos saudáveis e é exatamente disso que os pais e filhos adotivos precisam.

Quando se trata de questões relativas à adoção não se pode esquecer que o novo par que se forma, em suas mais diversas composições, sucede um outro par. A adoção, portanto, sempre envolve: a criança ou adolescente, os pais adotivos ou pretendentes e uma parte pouco lembrada, que são os pais biológicos. Não existe adoção sem a entrega voluntária de um filho ou sem a perda do poder familiar determinada pela Justiça.

O senso comum muitas vezes relega a importância dos pais biológicos na adoção, baseado no mito dos pais desumanos, considerados, neste caso, aqueles que entregam seu filho à adoção ou que perdem o poder familiar sobre este. Cabe aos profissionais que trabalham com adoção ir além desse pensamento minguado. Deve-se lembrar que vivemos em um país com enormes desigualdades sociais e que a entrega de um filho pode se sustentar em uma decisão dolorosa e indesejada. Também a perda do poder familiar pode romper um vínculo sem que se deseje. Além dos casos de maus-tratos, abandonos e abusos, a perda pode ocorrer, conforme explica Oliveira (2020), quando se verificar que a criança ou adolescente se encontra em situações de risco, como no caso da falta de saneamento básico, de moradia, de alimentação adequada.

Novamente, deve-se destacar que moramos em um país com desigualdades sociais abissais e em muitas das vezes, o rompimento do vínculo com o filho pode ser algo que não se deseja. Sofrimento pode emergir e tornar necessária uma intervenção em que uma escuta profissional e humana seja fundamental para esses pais. A culpa, o luto, as somatizações e tudo o que recai sobre o Eu precisa de um continente.

A psicanálise também encontra espaço no processo judicial da adoção, como abordagem utilizável por profissionais que nele atuam. Essa atuação é definida em norma legal, como no caso especificado no artigo 50, §3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. O referido dispositivo informa que a inscrição dos pretendentes no Cadastro Nacional de Adoção será precedida de um período de preparação psicossocial e jurídica, realizada por técnicos da Justiça da Infância e da Juventude. A preparação psicossocial irá avaliar, entre outras coisas, as motivações dos postulantes para adotar, pois o artigo 43 do ECA informa que a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e quando fundar-se em motivos legítimos. A escuta da psicanálise vai além do conteúdo manifesto e se torna fundamental para escutar aquilo que está latente no discurso dos pretendentes.

Na clínica, a psicanálise também tem papel fundamental junto aos postulantes. As dúvidas na tomada de decisão para adoção, o entendimento e maturação das motivações, as angústias geradas em relação à demora do processo judicial, as angústias e medos em relação às entrevistas, as angústias que surgem diante da dificuldade da criação de vínculo com a criança ou adolescente ao longo do estágio de convivência, as frustrações decorrentes do indeferimento da adoção e, principalmente, o importante acompanhamento do luto do não poder gerar devido à esterilidade, possibilitam amplo espaço de intervenção pela psicanálise junto aos pretendentes.

Assim também é com os pais adotivos. A psicanálise encontra campo para atuação e possibilita importante ajuda diante da dificuldade de identificação dos pais com o novo filho, diante da dificuldade para ‘sobreviver’ quando o filho testa os pais para saber se realmente será aceito e não incorrerá em novo abandono, diante das fantasias apavorantes em relação à hereditariedade do filho, diante do medo da revelação da adoção ao filho e de tudo o que se encontra escondido por detrás desse medo e das resistências encontradas que dificultam o estabelecimento da filiação sonhada.

Há também importantes questões relativas às crianças e adolescentes colocados para adoção ou adotados. Eles passaram pelo rompimento do vínculo com os pais biológicos, nas mais diversas idades e pelos mais diversos motivos. Alguns foram institucionalizados, outros foram adotados à brasileira, quando se registra um filho em nome próprio, sem o intermédio necessário da Justiça.

O rompimento do vínculo com os pais biológicos e o processo de adoção para estas crianças e adolescentes e também para os adultos adotivos, pode gerar diversos fantasmas, como os da origem e do medo do abandono. Pode gerar também as mais diversas fantasias como a do motivo da entrega e a do que o ambiente espera para que haja breve adaptação para não se correr o risco de um novo abandono. Essas fantasias e fantasmas geram dúvidas e torturam.

Pode-se conviver com os sentimentos de rejeição, inadequação, inferioridade, melancolia e culpa. Podem se fazer marcadamente presentes a grande agressividade, a impulsividade, a automutilação, a drogadição, o transtorno de pânico e os mais diversos sintomas.

O peso da revelação; o silêncio que tem que ser feito em relação à adoção não revelada, mas já sabida; o silêncio forçado em relação à adoção já revelada, mas sobre a qual não se pode falar; as expectativas e os medos dos pais; a ambivalência que coloca gratidão e ódio lado a lado e que pode afundar o adotado em culpa; a difícil busca pelos pais biológicos quando não há apoio dos pais adotivos; as constantes necessidades de adaptação ao ambiente; a rejeição da família extensa, enfim, o peso do mundo que envolve a adoção não romantizada pode ter acolhimento na psicanálise, que pode tornar tudo isso algo menos dramático para os adotados que dependam de ajuda, em qualquer que seja a idade.

Não se quer com o levantamento dos possíveis problemas da adoção, desmotivar o ato de adotar, pelo contrário. Aqui se quer jogar luz sobre esse universo tão complexo para que o processo de adoção possa alcançar seu objetivo de gerar vínculos afetivos saudáveis e sólidos reduzindo a possibilidade de sofrimentos desnecessários.

Também não se trata de defender a psicanálise como a única abordagem capaz de lidar com as questões da adoção. Aqui se trata de reconhecer a psicanálise como uma abordagem profunda, capaz de lidar com tão complexas questões, por meio da escuta e interpretação diferenciadas da transferência, dos discursos, dos silêncios e das fantasias; por meio da escuta e interpretação diferenciadas do brincar na clínica de crianças; por meio da interpretação dos sonhos; da capacidade de olhar para a singularidade de cada sujeito; da capacidade de ser acolhedora e humana. Tais características são fundamentais para lidar com as questões da adoção.

Waldemar Junior é psicanalista formado pela Sociedade Paulista de Psicanálise. 

Referências:

BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069compilado.htm> Acesso em: 06 out. 2021.

OLIVEIRA, Hélio Ferraz de. Adoção. Aspectos jurídicos, práticos e efetivos. 3ª ed. – Leme, SP: editora Mundo Jurídico, 2020.